A volta na Sala São Paulo, com público!

Dia maravilhoso, emoções fortíssimas, assistindo a meu primeiro concerto desde março.
Acompanhado por um grande amigo, antigo voluntário e assinante da Osesp (e, o que mais importa meu “pai brasileiro”), entrei vibrante na Sala São Paulo, um templo sagrado que, por um privilegio absoluto e misterioso, é também minha segunda casa.
Pouco antes do início, meu querido amigo me diz algo muito tocante: “normalmente uma Sala como hoje, com umas 200 pessoas, seria um espetáculo triste, mas hoje… é simplesmente maravilhoso”.
Pois é… Que maravilha ver essa “resistência”, esse desejo de reagir, de voltar a viver e sonhar, ao vivo (pois é essa a única forma possível de viver, por completo, a música).
Na terceira nota da obra inicial, do Arvo Pärt, já estava derramando, escondido do meu amigo, por uma timidez idiota, algumas lágrimas de emoção.
Olhava para o palco, para meus amigos e colegas, companheiros de uma vida, e de vez em quando olhava também para o público, pensando que, mesmo entendendo e respeitando quem prefere ficar ainda em casa, a escolha de estar aí, presente, não deixa de ser um “modus vivendi”, algo que nos define em base as prioridades e as decisões que tomamos ao longo de uma vida.
Me lembrei de uma gravação do 5 Concerto para piano de Beethoven, com Walter Gieseking, na cidade de Berlim invadida pelos russos, em que podem se ouvir claramente as bombas e os disparos do lado de fora do prédio. E o público era muito, naquela sala, naquela noite. Me lembrei de um recital de Isaac Stern em Tel Aviv, em que ao escutar os sirenes de alarme, ao invés de terminar a apresentação, colocou a máscara e continuou tocando, escolhendo sua missão acima de eventuais medos, e, incrivelmente, parte do público escolheu também ficar, de máscara.
Lembrei-me também da Filarmónica de Berlim tocando entre as ruínas da cidade recém bombardeada, e de uma orquestra em Stalingrado sediada, sem comer há dias, e que continuou tocando para seu público, também faminto. Não tinha comida, mas tinha música. E nesta ocasião, um soldado alemão que estava cercando a cidade e vendo aquilo, disse que um povo que está desmaiando de fome e segue tocando, não vai se entregar nunca, e nunca vai perder. Lembrei-me também de alguns pequenos grandes heróis que viajaram para Fukushima depois o desastre, mesmo com níveis radioativos bem altos ainda, tocando para salas lotadas…
A música e a arte sempre foram armas pacíficas mas poderosissimas em defesa da vida e dos valores pelos quais vale a pena viver.
Então quero agradecer, hoje, mais que aos meus companheiros de aventuras musicais e de vida, A ESSE PÚBLICO, que escolheu estar presente, nesse momento histórico, naquele templo da música que nos acolhe semanalmente e que nos inspira graças aos milagres que alguns homens, em algum momento, foram capazes de criar.
Porque a música é vida! E vencerá, uma vez mais.

Marin

Não lido bem com despedidas.

Hoje tinha uma festa, na Osesp, mas não consegui.

Já havia chorado durante e no final do concerto.

Eu tenho a covarde mania de fugir desses momentos, e de refugiarme na solidão confortável da saudade.

Uma era acabou.

8 anos de excelência. 8 anos de exemplos de profisionalismo e de liderança saudável como nunca tivemos antes, na Osesp.

Marin conseguiu abrir as portas do BBC Proms, do Festival de Lucerna, de Edinburgh.

Marin nos levou pela primeira vez na China e em Hong-Kong.

Graças a Marin, a Naxos publicou e lançou dezenas de gravações brasileiras e não brasileiras com nossa Osesp, e sempre graças a sua generosidade, eu entrei pessoalmente no catálogo da gravadora com um álbum ao qual outros seguirão.

Marin ampliou a Academia e instituiu a classe de regência.

Marin nos ajudou em nossos problemas mais crônicos, técnicos e de sonoridade.

Marin trabalhou incansavelmente para a Osesp, como grupo musical e como instituição.

E mais coisas, com ela, virão.

Hoje chorei muito, uma era está acabando. Uma era feita de disciplina, de respeito, de humanidade. E de excelência.

Nosso próximo diretor musical foi também meu candidato preferido, mas isso não impede, agora, de prestar homenagem a quem levou a Osesp a um patamar nunca alcançado antes.

Nunca se importou muito com música brasileira. É verdade. Mas isso era verdade também no caso do Frank Shipway, talvez o regente mais amado da Osesp.

Apesar disso, sua disciplina com cada obra foi ímpar.

Eu tenho um grande respeito por essa mulher batalhadora, grande artista, que forjou nossa orquestra e que me fez um músico melhor do que eu era 8 anos atrás.

Gratidão imensa, Marin, seu legado estará conosco, em cada concerto, em cada apresentação.

Obrigado, obrigado, obrigado.

Nathalie…

Nathalie é Música: não lembro um minuto sem que cada gesto, cada respiro, cada palavra não fosse intimamente ligado à música.

Nathalie é amizade: apesar da distância, e apesar dos meses que separam um encontro com o próximo, poucas pessoas me entendem como ela. Poucas pessoas me ajudam como ela. Poucas pessoas me SALVAM como ela.

Nathalie é um ser humano: tem sim suas fraquezas: tem nervosismo que as vezes não sabe controlar, tem ansiedade que afeta a todos… Mas não faz nada por esconder essas “fraquezas”, que para mim, assim, se tornam virtudes.

Nathalie é pranto. Poucas vezes choro como quando estou com Nathalie. Choro pela música profunda que consegue fazer. Choro pela humanidade que consegue ter. Chorei várias vezes na frente dela, contando da minha vida, e ela me contando da dela…

Nathalie è exemplo: exemplo de dedicação total, de compromisso com nossos Deuses, que são os grandes compositores de todos os tempos.

Nathalie é uma grande musicista, imensa. E é minha amiga. E nunca serei grato suficiente ao Universo por isso.

Ni Hao

Cenário de Blade runner. Uma alma profundamente ligada as tradições, combinando com uma modernidade que nem olha para o futuro porque já é futuro. Por outro lado, sensação de solidão. Não está fácil. Nem explicar. ( Foto E. B. )

O que mais dá prazer, apesar do cansaço pela diferença de 10 horas com o Brasil, é passar longos períodos com quem mais me conhece: meu violino e minha música. Nesses momentos, sozinho, minha solidão desaparece. ( Foto E. B. )

… E como gosto de fazer na Sala São Paulo vazia, aqui adoro também tocar na plateia vazia, que em poucas horas estará repleta de seres humanos buscando emoções que nunca sei se serei capaz de entregar. ( Foto Mariana Garcia )

Transparência, luz, e mãos abertas para o céu. Afinal, a Arte toda almeja a uma eternidade, nem que seja ilusória. (Foto E. B.)

… Simulando tranquilidade, enquanto o vulcão de emoções por dentro está em fogo. (Foto Mariana Garcia)

Antes de dormir algumas (poucas) horas, uma taça de vinho. As vezes comemoração, outras consolação, brindando aos companheiros de aventura, aos bons seres humanos, e a mais um dia vivido com a sensação de ter feito algo que tenha um certo valor. ( Foto E. B. )

Uma grande revelação.

Chama-se Valeria Sepe, e é uma das cantoras mais sensacionais que escutei ao vivo em minha vida.

Ela está em São Paulo, fazendo o papel de “Manon” no último ato da ópera de Puccini, dentro da programação da temporada 2018 da Osesp.

No primeiro dia de ensaio, depois poucos segundos, tive um “deja-vu” musical ( sei que não é um termo correto e coerente, mas é o que mais chega perto do que senti ); escutar essa voz me lembrou instantaneamente a inesquecível Mirella Freni na famosa “Boheme” de Puccini ao vivo ( com Luciano Pavarotti e a regência de Karajan ), que é uma das interpretações lendárias dessa ópera.

Quantas lágrimas derramei escutando aquele “live” do Festival de Salzburgo…

Volto a Valeria Sepe.

Comparações assim podem soar simplórias, e de fato não são fruto de uma análise aprofundada, mas sensações do momento, que agora estou firmando nesse blog. Por outro lado, depois do ensaio, em casa, comecei a perguntar-me porque eu me lembrei da Mirella Freni.

Como ela, Valeria Sepe possui uma voz a um tempo aveludada e poderosa, lindissima. Nunca perde a qualidade, o vibrato é equilibrado e não sai do “centro” da nota. A sustentação dos agudos, nos momentos mais dramáticos, mostra um domínio técnico absoluto. A interpretação é intensa e completamente mergulhada no papel de “Manon”.

Poucas vezes, nos meus anos de spalla em Bologna (“Comunale”, com Daniele Gatti regente principal), Trieste (“Teatro Verdi”, com Daniel Oren regente principal, Milão (“Scala”, com Riccardo Muti diretor musical), e nos últimos 15 anos no Brasil, muito poucas vezes, fiquei tão impressionado com um soprano como fiquei nessa semana.

Acredito que, se o destino continuará a mostrar-lhe o caminho, e se sua disciplina continuará impermeável às tentações do sucesso fácil, Valeria Sepe pode se tornar uma das grandes figuras do Universo do melodrama moderno. Esse é meu desejo. Escrevi tudo isso com uma imensa gratidão por proporcionar-me momentos inesquecíveis ao longo dessa semana.

Mistério

Ainda sob os efeitos mágicos do concerto na Sala SP, e sozinho em casa, sinto a necessidade de tentar entender um pouco daquilo que minha grande amiga Nathalie Stutzmann faz em seus concertos.

Hoje foi Rossini, Hummel e Beethoven, com a participação de um Antoine Tamestit que, se não existisse, seria difícil de imaginar…

Primeiro: esqueçam a “regencia”: aquele conjunto de regras acadêmicas que “ensinam” como reger um diminuendo, um crescendo, um rallentando… nada disso.

Com Nathalie se fala a linguagem da música no sentido mais etéreo. Tudo é traduzido em imagens sonoras, não em fórmulas acadêmicas. É um estímulo para nossa fantasia trabalhar, sugerindo cores, caracteres, ideias. Como quando, mas é só um das dezenas de exemplos, em uma intervenção dos violinos na 7a de Beethoven, ela pede para imaginar um “I-don’t-care—I-don’t-care—I-don’t-care—“.

Não tem nada, no programa dessa semana que não seja traduzido em imagens, reais ou da fantasia.

O que Nathalie Stutzmann faz, e como ninguém, é estimular o subconsciente de cada um de nós. Se outros regentes pedem “mais piano” ou “mais forte”, ela se recusa de aderir a uma praticidade simplória. Nada disso. As indicações, sempre, vão mais no sentido de imagens: “como na neblina”, ou “por favor, imaginem passos de dança”…

Me lembra a maneira do amado e saudoso Frank Shipway de ensaiar, sempre apelando para algo que existe no imaginario de cada um, mas que ninguém realmente vive no dia a dia das orquestras sinfônicas modernas.

A 7a de Beethoven com Nathalie Stutzmann é a “apoteose da dança”, como Wagner a definiu, em seu sentido mais profundo. Nada é acadêmico. Aliás, acho que se tem algo que a regente francesa odeia é esse termo: acadêmico. E junto com o termo, esse jeito de fazer música.

Com Nathalie, a música é vida. E como a vida, ela reclama, cansa, desafia, dança, grita, chora, ama, abraça.

Inesquecível. Como sempre.

Minha mais nova colega

Chama-se Deborah Wanderley dos Santos. É a última violinista titularizada da Osesp.

A titularização aconteceu hoje, depois de muitos meses de período probatório. Aconteceu de forma secreta, e todos seus colegas violinistas, e mais os chefes de naipe das cordas, o diretor artistico e a diretora musical votaram.

Não é a primeira e nem será a última a ser titularizada na Osesp, mas se dedico algumas linhas do meu blog a esse feito, existe um bom motivo.

Deborah é um exemplo para todos nós. A conheci quando estava de volta no Brasil, já que por problemas de visto teve que abandonar o projeto social que tinha criado, do zero, em Chicago, projeto que continua existindo e ajudando jovens até hoje.

Me procurou depois de um tempo. Comecei a trabalhar com ela os fundamentais e, paralelamente, o repertório.

Nada escapava a sua mente brilhante e cada pequeno comentário era absorvido como se fosse água sugada por uma esponja. Fiquei muito impressionado, de primeira. Depois, me acostumei, e passei a considera-la uma daquelas poucas pessoas que sabem focalizar a energia para um centro. E conseguem o que querem graças a isso.

Fez o primeiro teste na Osesp. Não passou nem da primeira fase.

No meu telefonema, após a derrota de ambos (Eu vivo o teste dos meus alunos como se fosse meu próprio teste), no lugar de uma compreensível reclamação e choradeira, ouvi só a determinação em estudar mais para a próxima vez. Impressionante e edificante.

No próximo teste, não teve dúvidas. Chegou na fase final e ganhou a vaga por unanimidade da banca. Ainda lembro o silêncio e a concentração antes de tocar os excertos orquestrais. Naquele silêncio, podia ouvir o ritmo do meu coração, que estava ainda mais enlouquecido do que o dela, tenho certeza disso.

Ganhou. Felicidade. Gratidão (poucas vezes percebi tanta gratidão em um aluno).

No decorrer dos meses sucessivos, muitas aventuras mais ou menos prazerosas. Muitas discussões sobre didática, sobre como usar a música para resgatar crianças perigosamente fora do caminho saudável, sobre alguns projetos juntos.

Sempre disponível a tocar, inclusive de graça, quando era para uma boa causa. Ou mesmo quando a causa parecia boa, mas na verdade era uma das muitas “pegadinhas” de aproveitadores…

Muita música juntos, muitas discussões, um lindo caminho trilhado juntos, entre obstáculos de vários tipos.

Sem prenúncio, chega um dos obstáculos piores: um grave problema físico no ombro e no braço, que tira a Deborah da Osesp. Não existe previsão de volta.

Mais uma vez, EU SEI, foi mais a atitude dela do que o percurso médico. Voltou, venceu. Mostrou a capacidade que o ser humano tem de dar uma volta por cima e mostrar sua força.

Voltou. Com tudo. E hoje foi titularizada. Hoje é minha mais nova colega na Osesp.

Quero homenagear uma mulher extraordinária. Que já fez tanto para crianças do mundo inteiro e ao mesmo tempo já fez tanto para a Música no Brasil.

Bem-vinda na Osesp. E obrigado por tudo o que você me ensinou.

Beethoven: Concerto tríplice. Pensamentos noturnos


Sim, eu sei: deveria estar dormindo. Cheguei na Itália, vindo do Brasil, na tarde desta segunda feira, e duas horas depois estava já ensaiando com os solistas e o regente do Concerto tríplice. Agora são as duas e meia da madrugada, e embora amanhã (hoje!!!) Tenha um ensaio longo com orquestra e o concerto a noite, estou aqui meditando sobre esta obra, já definida por muitos como “menor” na produção do gênio de Bonn.

Discordo.

Curiosamente, nessas últimas semanas, convivi com três obras de Beethoven muito próximas cronologicamente: o Quarteto op. 59 n. 2, tocado com meu Quarteto Osesp na Sala São Paulo ( https://youtu.be/YLeudM3HK7M ), a Sinfonia “Eroica”, que embora não teve minha participação ativa no palco, ecoava o dia todo pelos corredores da Sala, e o Concerto tríplice, que voltei a estudar no início do ano para esta apresentação que será justamente hoje, em minha cidade natal: Trieste.

As obras do primeiro período, mais ligadas estruturalmente á linguagem clássica e aos exemplos de Haydn e Mozart, são distantes. Não no tempo, pois muitos poucos anos se passaram, mas no conceito e no caminho que Beethoven está buscando.

Já no início do primeiro movimento do Concerto tríplice, assim como no Quarteto op. 59/2, os silêncios tornam-se parte integrante de um tema que não quer se afirmar: temos uma frase, curta e sem ornamentos, quase fria… E o silêncio. Mais uma vez a frase que ganha um pouco de coragem, mas que mais uma vez é bruscamente interrompida por uma pausa. E assim continua por mais algumas tentativas falidas de se desenvolver em um discurso. Mas quando o tema verdadeiro em toda sua forma ampla e majestosa aparece, entendemos a força que ganhou, graças a um início tão inusitado.

Os temas são quase sempre introduzidos pelo violoncelo, que certamente tem o papel principal e o mais árduo e desafiador, e que presente para os violoncelistas, que não ganharam um Concerto para seu instrumento escrito por Beethoven mas que suscitam as invejas (das boas!) dos violinistas e dos pianistas ao tocar o canto livre que abre o segundo movimento. O que é esta jóia de movimento? Um oase de paz, de serenidade, e por uma vez a expressão fechada dos retratos que conhecemos de Beethoven esboça um sorriso sem drama.

Também genial a maneira como do segundo movimento se passa sem interrupção a um terceiro que é pura felicidade, que encerra brilhantemente um dos Concertos mais serenos e líricos que Beethoven escreveu. Aliás, será que os que consideram “menor” uma obra como essa não a julgam assim só porque não corresponde àquele caráter que o tempo e a superficialidade definiu como “o” caráter único da música de Beethoven? Mas eu acho que em Beethoven não tem só o drama, o destino, os ímpetos revolucionários, as lutas internas e externas, mas existe também a humanidade, a ironia, e também uma leve simplicidade quase infantil.

Toquei várias vezes este Concerto, no Brasil e na Itália, e da última vez foi no cenário inesquecível do Duomo de Verona ( https://youtu.be/Nkh7bRWdKz8 ), mas confesso que o concerto de hoje terá uma humanidade especial, porque o violoncelista é uma das pessoas e dos músicos mais extraordinariamente genuínos que conheça, Massimo Macrí (chefe de naipe da Orchestra Sinfonica Nazionale della RAI de Torino), e o pianista será Luca Delle Donne, um jovem e talentoso pianista, com o qual já gravei as Sonatas de Schumann (logo será publicado o cd) e que conheço desde a adolescência quando estudava com meu pai. Como se não fosse suficiente, a Orquestra será formada inteiramente por jovens estudantes, e certamente a energia será muito especial.

Muito bem, preciso realmente tentar vencer esse jet-lag (são 5 horas de diferença com o Brasil nesta época) pois amanhã (hoje) o dia será bem intenso…